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Papo de coração furado
Apto. 202
sexta-feira, março 28

Já era manhã, mas não se podia saber muito bem dentro daquele quarto escuro e abafado. Os raios de sol travavam uma batalha quase mortal com as persianas a fim de tomar um espaço naquele cubículo fechado. Parecia até não existir vida dentro do 202, não fossem os pedidos periódicos do serviço de quarto. Alguém morava ali, era claro. Mas não se via ninguém sair ou entrar fazia dias e os vizinhos já começavam a imaginar todo o tipo de teoria macabra do que poderia ter acontecido com o hospedeiro daquele apartamento. Que espécie de pessoa habitava aquele lugar... Seria homem, mulher? Certamente na faixa dos 25, quase 30. Talvez ela fosse algum foragido da polícia ou quem sabe um espião disfarçado tipo os que a gente vê nos filmes de ação hollywoodianos. Pior, e se fosse como algum daqueles serial killers que aparecem na tv? Bem, que não seja do tipo que mata vizinhos curiosos. Já era quase meio-dia, os pássaros já paravam de cantar, o ritmo dos carros se intensificava - era a hora de saída do trabalho para o esperado almoço. As persianas continuavam fechadas, mas o sol não desistia. Alguém se mexia na cama, o corpo mole, a sensação de estar em lugar algum, nem no sonho nem na realidade. Aquele estado de limbo; a sonolência. Próximo à cama, podia-se ver um cinzeiro transbordar, com ainda um cigarro meio gasto se sustentando em suas extremidades. Perto dele, revistas velhas marcadas pelo tempo e um porta-retrato com um formato bobo, meio vintage. Uma foto. O corpo inerte que estava na cama se mexeu novamente, virou-se e através de uma visão embaçada, ainda remelada, mirou a fotografia. Era um casal, ou pelo menos era o que parecia. Também pareciam felizes, o braço do homem confortavelmente repousava sobre o ombro da mulher, como num ato de proteção, de afeto; como se ela fosse algo tão precioso que seria loucura soltar. A mulher, por sua vez, se deixava embalar pelo corpo do homem e deitava delicadamente a cabeça em seu peitoral. O corpo na cama se remoeu, algo o incomodava. A vista embaçada do sono tornou-se então embaçada por lágrimas, centenas delas, seguindo seu curso natural entre o fundo dos olhos e o contorno do rosto. Não era a primeira vez que elas apareciam assim tão subitamente, mas logo seria a última... Já era noite, os pássaros já haviam ido se deitar e a cidade dormia, tranquila, quase como uma criança. A lua tomava o lugar do sol; as persianas haviam ganho a batalha. O corpo continuava deitado na cama, mas já não mexia. 
Nada mais se mexeria no apartamento 202. 


Vovó e o tempo
segunda-feira, janeiro 27

Velhinha, de cabelos brancos,
vista pouca, coração brando.
Fala dos tempos antigos,
dos namoros, da inocência perdida,
a confusão dos dedos num abraço de mãos.
Os olhos fixos, sem ver de certo nada,
dispersa nas lembranças de um passado quase esquecido.
Aperta o peito,
alegria, tristeza; a nostalgia de algo que já não o é.
Algo que deixou de ser há muito,
mas que se agarra aos fios da memória,
tênue, frágil...
Velhinha, de cabelos brancos,
escuta pouco, o ar lhe escapa ao falar.
Com a sabedoria do tempo
detalha as explicações sobre as fases da lua.
Sabe as horas melhor que o relógio,
"- Já bate as três?"
Velhinha, de cabelos brancos,
sonha porque é o pouco que lhe resta.
Os pés lhe pesam ao andar.
Caminha na estrada rasa da memória,
vai devagar.


O Despertar
segunda-feira, agosto 12

          Um som parecia vir de longe, lentamente, aumentando gradativamente, enquanto meus sentidos retornavam aos poucos. Os lençóis bagunçados pela cama, peças de vestimentas espalhadas pelo chão, o cheiro do seu cigarro preso em mim, na minha pele, nas roupas que ainda sobravam em meu corpo. Um som. Uma batida. Alguém brigava com a porta do apartamento exigindo atenção. Mais batidas. Meu ouvido acordava, assim como despertavam minhas lembranças. De repente tudo ficou claro. O som ficou alto, a cabeça doeu, os músculos do corpo gritaram, o coração bateu. E bateu a porta novamente... Minhas narinas detectaram o cheiro do teu perfume, minha mãos descobriram o vácuo que sua cabeça deixara no travesseiro. Outra batida. Mesmo som. E eu não queria acordar...


Cinema Paradiso

Alfredo diz que o cinema é só um sonho,
e que a vida real é dura;
o filme é apenas uma curva,
no caminho da solidão.
Mas se o cinema sonho for,
então de sonho quero viver,
quero sentar na escuridão,
e esperar a luz da tela resplandecer.
Quero o sentimento da espera ansiosa,
do som que anuncia a película,
do murmurinho da multidão.
da música de partida.
Quero sonhar os sonhos do artista,
chorar seus males, sorrir suas alegrias,
sentir os amores e desamores,
da encruzilhada da vida.
Se o cinema sonho for,
não quero mais acordar;
pisar no duro da realidade;
tropeçar.


Marcas
terça-feira, outubro 2

     O tempo passa na cadeira de balanço, e a senhora que um dia foi moça espera. Espera por tempo melhor, pelo que já passou, pelo que ainda vem chegar. Veste seu melhor vestido de estampas floridas, quem sabe pra dizer que ainda há felicidade na sua solidão. Mas seus olhos não negam o quanto faz falta o passado, as pessoas que por ela passaram e se foram, e a deixaram, assim, em sua cadeira de balanço. A senhora vê mas não enxerga as letras mais pequenas, sente falta dos livros e das viagens que fazia a cada folheada. Sente falta de seus cabelos castanhos, do modo como o vento os levava. 
      A senhora fala dos tempos de menina, dos puxões de orelha que recebia da mãe pelo desinteresse na costura, da alegria ao conseguir fazer uma calcinha de babados, do morro, da casinha de barro. A senhora fala do seu primeiro amor, de seu esposo que batalhava nos canaviais pro sustento da família, da quantidade absurda de filhos que teve, do amor feito, do desconhecimento da pílula. A senhora fala e eu vejo sua história através das marcas do tempo em seu corpo, dos ossos aparentes, dos cabelos brancos, das olheiras e dos olhos afundados na melancolia da lembrança. A senhora fala e eu enxergo a tristeza da memória, das coisas passadas, do que foi deixado para trás, do que partiu. Eu vejo a solidão de quem já viveu tempo bastante, de quem foi esquecido, na cadeira de balanço. Eu leio o abandono em suas feições, o descaso, a cólera, a consciência de sobreviver não de viver. A senhora fala e eu compreendo seus sonhos, seus desejos, seus medos. A senhora se agarra à bíblia, ora para Deus do céu, mas tem medo de partir a seu encontro. E tem medo também de não partir. A senhora teme o escuro, as coisas que não pode ver, as coisas que podem acontecer e as que acontecem. A senhora tem fé porque só a fé lhe resta. A fé e as marcas, as lembranças e a caixinha dos remédios; a cadeira de balanço.


Durmo
domingo, agosto 12

     Os pássaros cantam e eu sei que estou vivo, mesmo que meus olhos digam o contrário, mesmo que eles não vejam nada, só o escuro. Deitado, com as cortinas do quarto prendendo a luz do sol, eu inexisto, eu finjo que não estou aqui mesmo sabendo que estou porque os fiapos do lençol se fazem sentir nas minhas costas nua. Imóvel, prendo a respiração, estufo meu peito, e por um momento eu me igualo aos móveis do quarto, à escrivaninha velha do canto da parede, à máquina dos tempos antigos, às fotografias que não deixam morrer aquilo que já morreu. Aperto meus pulmões, pressiono-os, não os deixo trabalhar e por um instante eu me torno nada, eu sou um nada, me sinto um nada. Então meu corpo grita, meu pulmão briga, minha respiração liberta-se de mim mesmo e estou vivo de novo. Num engasgo, o ar sai e entra, entra e sai, e meu coração bate forte, bate como forma de protesto, como que dizendo "você é algo". Um vento forte ameaça as janelas do meu quarto, estremece a madeira, eriça os pelos do meu corpo. Os pássaros, lá fora, cantam mais alto, aceitando o desafio do tempo. Aqui dentro, meu coração ainda bate, menos forte, mas intenso e eu lembro do movimento de seus cabelos cor de mel, da saia provocante, dos olhos negros como a noite sem estrelas, dos sussurros mal ditos, das histórias não ditas, do entendido, do subentendido; do que nunca se entendeu. "Te amo", eu dizia "Também o amo" dizia ela sem dizer. "Te adoro", dizia eu, sem sequer falar uma palavra, sem soar uma sentença. E ela compreendia, ela me conhecia melhor do que eu. Saiamos dos lençóis, depois do amor feito; ela me olhava e eu sabia que tinha feito do jeito certo, do jeito dela, do nosso jeito. Meu dedo indicador seguia do meu peito esquerdo ao peito esquerdo dela; ela sabia assim que eu a amava, que meu coração era dela e o dela era meu. A gente era tudo e nada. Eu era nada sozinho, ela era tudo comigo. Nós eramos algo. Agora eu durmo, mesmo sem dormir. Durmo com os olhos abertos, com os olhos fechados. Durmo pra fingir que tudo é um sonho; durmo para fingir que  um dia posso acordar.


[Des]prender-se
quinta-feira, julho 12

Se hoje choro, é porque um dia já sorri - por você -.
Se hoje te odeio, é porque já te amei demais.
Tanto te amei que enjoei; libertei teu barco do cais.
Soltei o nó que prendia teu corpo ao meu,
Cortei as cordas do teu abraço, separei-me do teu afago,
Como se separam os gêmeos siameses.
Vendi tua alma aos piratas,
E às sereias restaram só as lascas, 
A poeira e os pedaços do teu coração.
Pra mim sobrou a saudade, 
Sobrou o travesseiro afundado, os lençóis amassados,
Os sussurros mal captados
Na madrugada das corujas.
Sobrou uma mancha de vinho,
A penumbra das noites de lua cheia.
O uivo da matilha; as cartas de baralho.
Suas digitais...
Nos jornais, nos postais.
Na maçaneta da porta, na superfície da mesa.
Na alça da cadeira.
Na madeira da cama.
Na dimensão do cais.



Animal urbano

A sirene toca, o alarme dispara,
Late o cachorro, mia o gato.
Lá fora no asfalto, chiclete gruda no sapato
E a menina puxa o casaco da mãe.
Passam próximas as cabeças,
Os corpos quase se chocam,
Na confusão das ruas
Tudo é compacto, apertado,
Amassado, deformado.
É errado tanto caos.
Tanta sujeira, tanto atrito,
Tanto esgoto, tanto rosto.
Mas a gente finge que não,
Que não é anti-natural,
Que é até normal, viver nesse sufoco,
Mendigando, com esforço, um espaço no varal.




Saudade do que não vivi
quarta-feira, julho 11

     Às vezes eu penso que nasci no tempo errado. Penso que talvez fosse mais feliz com um lápis quebrado que com um botão deslocado de computador. Se eu morasse numa casinha com arquitetura antiga, traços meio barroco, uma salinha empoleirada com móveis provençais e um relógio cuco que me tiraria os nervos a cada metade de dia; talvez eu fosse mais contente. Se eu pudesse sair pro meu jardim modesto com minhas hortaliças devidamente cuidadas e sentasse na minha cadeira de balanço postada na varanda da casa próxima à porta de entrada, decorada por um tapete convidativo com os dizeres "Seja Bem-vindo" em letras garrafais e bonitas, talvez eu fosse menos triste. Talvez me sentisse menos vazia, menos nostálgica. Talvez minha vida ganharia mais cores e talvez quem sabe eu começaria a me impressionar mais com as coisas. Ali, sentada contra o vento, meus ouvidos notariam os sons que ele não consegue ouvir com o barulho dos carros, meu nariz sentiria o perfume das flores; os pêlos de meu corpo eriçariam com a brisa gelada e meu cérebro captaria aquele gesto como o gesto de alguém que vive, que respira, que suspira. Eu seria um ser vivente, não mais sobrevivente, nesse mundo de gente mecânica. Se eu tivesse nascido em outros tempos, naqueles tempos dos bons costumes, das saias macro, das poesias não-baratas, da música tocada na vitrola, dos rhythm and blues, do chorinho, da boneca de pano, das cartas trocadas e do jogo tímido dos amantes; talvez eu gostasse mais do mundo. Talvez eu não quisesse causar sérios danos aos sujeitos que passam por mim a cada instante ou talvez eu não desejasse que setenta por cento dos seres humanos simplesmente deixassem de existir. Não sei. Talvez eu tivesse mais fé em forças sobre-humanas, rezasse prum santo a cada virada de lua. Ou se eu somente tivesse fé. Talvez eu parasse de pensar tanto em talvezes e me concentrasse no que é certo. Talvez eu fosse mais feliz. Mas isso é só um talvez. E de talvez eu já tô cheia. Me deixem.


Das coisas que devemos saber
quinta-feira, julho 5

"Mas se Deus é as árvores e as flores
E os montes e o luar e o sol,
Para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;
Porque, se ele se fez, para eu o ver,
Sol e luar e flores e árvores e montes,
Se ele me aparece como sendo árvores e montes
E luar e sol e flores,
É que ele quer que eu o conheça
Como árvores e montes e flores e luar e sol."


Fernando Pessoa, em  O guardador de rebanhos (V - Há Metafísica Bastante em Não Pensar em Nada).


Você
segunda-feira, junho 18


Como um muro, um muro transparente. Às vezes oscila parece desaparecer mas volta. Insiste, se choca. O impacto é duro mas quase não se faz perceber. Ele paira, separa, distancia. Mas meu corpo insiste, minha pele tenta grudar, se estabelecer. A gente que quer dar nome a tudo diz que é tristeza, eu digo solidão. Eu finjo que tem cura e que sou eu quem pode curar. Mas você insiste que não que não tem como ser feliz. Porque eu vi sublinhado num dos seus livros de cabeceira que por mais simples que possa parecer é impossível ser na realidade.


Pequena nota sobre arquivos pdf

       Começo meu relato dizendo que danem-se os arquivos pdf e essa modernidade de se ler um livro sem um livro. Porque a tela não tem o mesmo gosto que a folha de papel quando a gente petisca uma pontinha na hora de virar a página. Nem tem o amarelado orgulhoso de um livro que já viveu e já foi vivido e já deu vida à vida da gente. Nem os sublinhados e as marcas deixadas de agrado por um estranho ao se permitir transparecer por uma fração de momento. Nem a sensação da gente ao mergulhar nesse pequeno íntimo do estranho que já não é mais estranho por isso mesmo. Então danem-se e dane-se você em particular, senhora modernidade, por dar mais lucro aos empresários vendedores de óculos de grau.


O que sucede
quinta-feira, abril 26

o relógio está para bater as três
no quarto escuro não se contam os minutos
os dias se perdem, as horas se confundem
tudo parece igual
como se o tempo parasse
como se o tempo fosse escravo dos amantes
cúmplice dos suspiros abafados por debaixo dos lençóis

o relógio bate e são três da manhã
no quarto escuro os amantes se remexem
como se acordassem de um sonho distante
os minutos começam a pesar 
o tempo tenta se soltar
e os lençóis se afastam
-é hora de partir.


Estranheza
quarta-feira, março 14



Patinho feio, anda sempre cabisbaixa.
Faz da calçada seu céu,
Põe seu calçado e dispara.
Passeia com seus pés,
Vai em linha reta,
Nunca olha pros lados,
Com os braços quase estáticos,
Sente-se tosca, troncha, torta.

Ao redor sente vento,
Movimento, descontento.
O peito aperta,
Ardem os olhos.
Passa um pássaro, 
Passa um poste,
Passa um homem.
Mas a tristeza não passa...
A estranheza não vai...

Patinho feio; nunca se encaixa.










De meia tigela se fez poesia
quarta-feira, fevereiro 8


Ela quer tirar o escudo protetor
Libertar-se do peso adicional
Arder as feridas ao vento
Sentir o movimento
Pôr eu no plural


Ela quer despir-se, ficar nua
Desativar o campo invisível
Deixar à mostra seu íntimo
Até o mais ínfimo
Pedaço de pele


Ela quer dizer eu te amo
Sem medo d'eu também
Ela quer dizer bem no canto
-No canto do ouvido-
Vem cá amor que eu te mimo
Que eu te quero tão bem.


Dias de poste
segunda-feira, janeiro 30



      É em dias raros de céu nublado como estes que eu mais me sinto dispersa no mundo. Tudo me parece mais distante, tudo me soa estranho, o paladar já não distingue os gostos tão bem como de costume. Por um momento sou apenas eu e o poste. Inertes, mas de algum modo funcionando. Estamos parados, eu não sinto como se respirasse, mas respiro, e o poste carrega tanta energia mesmo sem fazer esforço. O poste e eu. Imóveis. Não fosse o vento provocando meus cabelos e sussurrando que estou viva, o mundo inteiro me veria como o poste. Porque é como poste que eu me sinto. Estático por fora, dinâmico por dentro. Mas ninguém tem visão de raio x, ninguém é capaz de ver além da minha pele. Ninguém é tão insistente como o vento em se fazer parecer presente. E eu fico assim, sentindo uma vida que me volta mas que não parece me pertencer. O barulho constante das cigarras cutucam meus ouvidos e eu me incomodo e meu incômodo diz que estou aqui, sentada perto do poste, de algum modo viva. E o pássaro que sobrevoa o céu nublado passa a frente de uma nuvem com formato de ameba. E os carros vem e vão e todos parecem iguais. Eu pareço a mesma mas sou agora uma mistura de coisas diferentes, de ideias novas. Um pensamento diferente, um gosto diferente, uma outra visão. Não mais um poste. Agora eu me levanto do banquinho do parque e já não sou mais um poste, eu ando eu controlo minha respiração; eu corro, eu olho para o céu e vejo o pássaro se distanciando e vejo a nuvem tomando uma nova forma. Eu paro e volto a andar, dessa vez sentindo o vento seguir a meu favor, como se eu fizesse parte dele, parte do todo ao meu redor.


Vômito
quinta-feira, dezembro 29

         Chovia e era uma chuva forte, daquelas capazes de lavar a imundice das ruas por um breve instante, frear a agitação costumeira de pernas e pneus pelo centro da cidade. Guarda-chuvas iam e vinham, de vez em quando até um jornal ou uma maleta sobre a cabeça. As poças de água abafavam o som dos sapatos, molhavam os abanhados desavisados das calças, desafiavam a paciência de quem por elas passava. Era oito da manhã e alguém andava mais rápido do que as condições permitiam. Andava rápido, quase correndo, esbarrando em quem ousasse caminhar à sua frente, homem ou mulher ou um vendedor de frutas idoso e inofensivo, isso não importava naquele momento. Nada importava. Nada existia mais porque nada mais fazia sentido. Ninguém era confiável, ninguém era bom, ninguém merecia compaixão. Aquilo já havia acontecido antes e ela prometera que da próxima vez, se houvesse uma outra vez, haveria de ser diferente, ela faria diferente, agiria diferente, agiria como outra pessoa, alguém mais sensato. Tropeçou, desequilibrou-se, caiu de joelhos na calçada. 
      Mulher, vinte e seis, solteira à três curtos minutos, noiva durante três longos anos. Sorria ao recordar os momentos bons, sentia raiva ao perceber no que se haviam transformado: lembranças fabricadas embrulhadas num papel bonito de mentiras e dissimulação. Só de pensar que aquele sorriso, o seu sorriso, aquele que surgia apenas à sua presença, na verdade vinha por causa de outra... Aahh... Não só partia seu coração, como o esmagava até virar pó e se dissipar; até não existir. Chorava. Mas chorava pois sabia que no fundo fora também culpada. Ela sabia, sempre soube. Aquilo que seus olhos não viam, seu coração podia sim sentir. Não sabia como nem por quê, apenas sabia, como se um fantasma sussurrasse em seus ouvidos tudo aquilo que ela insistia em não enxergar. Era inútil fingir, negar. Sabia que quando as luzes se apagavam não era ela na cama. Não era ela a quem ele suspirava amores, gemidos abafados de desejo. Podia ser seu corpo, mas para ele era outra alma. A alma dela, a outra. Fragmentos de um passado que ele se recusava esquecer, que, quando as luzes não mais refletiam a verdade, deixava-se possuir pela ilusão de suas falsas lembranças. Mas ela sabia; que não era dela, que não era ela. Por isso chorava. Pela ignorância que fora sua melhor amiga todos esses anos. Por todo o teatro que fora sua vida. E que grande papel interpretara, que magnífica atuação. Sorriu, um sorriso inexpressivo.
       Chovia. Chuva forte. Chovia também em seus olhos, mas ninguém percebia. Tudo se misturava numa chuva só. Ninguém se importava. Seu coração doía, apertava, já não conseguia respirar. Ninguém via. Vomitou, como se pudesse botar para fora à força tudo aquilo que não suportava mais guardar para si. Enfiou o dedo na goela, o mais fundo que podia, quem sabe para vomitar seu coração, as lembranças dele que grudavam em seu cérebro como parasitas famintos, todo o seu gosto, que ficara amargo, ácido. Chovia e a chuva saturou o vômito. E ninguém notou seus resquícios na sola do sapato. Ninguém sequer notou.


Tarde
quinta-feira, setembro 8

           Uma escrivaninha rústica. Papeis amassados pelo chão. Poucos papeis ainda intactos numa pilha. Café deixado pela metade. Óculos de leitura descansando, meio jogados, descuidados. Perto da beirada, à esquerda da escrivaninha, uma máquina antiga, com alguns muitos anos a mais que seu dono, porém meticulosamente conservada. Uma poça de tinta preta, antes quase insignificante, traça um caminho estreito até o fim da mesa e pinga, e pinga, e pinga outra poça no assoalho de madeira. Do rádio soa música. Música vinda de tempos passados. Boa música. Rhythm and blues. Fotos fragmentadas. Rostos felizes. Um homem e uma mulher. Fotos rasgadas. Uma marca quase apagada de batom vermelho. No verso de uma fotografia picotada: "Para sempre, mesmo que seja breve"; caligrafia de mulher; as iniciais S.C. Janela entreaberta. Um feiche tímido de luz por entre as cortinas cor de areia. Um corpo sobre o chão. Os dedos ainda movem. Insistem com os últimos suspiros de vida. Os dedos estremessem, o homem sufoca, a respiração para. O punhal cai. O sangue jorra lentamente e pinga. Pinga. Desliza. Escurece. 


Meu lugar favorito, seu mundo de quatro paredes
quarta-feira, setembro 7

                 
            Os livros devidamente emparelhados em duas estantes, ocupando apenas o espaço da esquerda, enquanto sua coleção de filmes descansa deitada numa pilha à direita e, por entre os espaços, um Darth Vader enfeitado com botons. Seus frascos de perfume; seu cheiro guardado, protegido. Sua carteira e suas chaves.
            Na porta, cabides elevam suas camisetas quadriculadas, a sua identidade visual. Seu unico boné, com estampa black sheep. Seu chapéu preto, nem coco nem muito afinado, com um bottom que você colocou para parecer mais seu: "Star Wars".
                 Sua tevê de tela plana de não sei das quantas polegadas; seu novo plano de montar o Império; nossa desculpa para fazer outras coisas. Seu nintendo gamecube, seus jogos de Zelda, Mario, Resident Evil 4. As marcas do menino que ainda reside no homem. O passado presente. Nostalgia.
               Por fim, sua cama. Meu lugar favorito, no meu lugar favorito que é o seu mundo de quatro paredes. Porque é sua, porque você deixou ser minha, porque agora é nossa. Porque eu me sinto segura, porque você me embala em seus braços como alguma coisa muito preciosa para se deixar dispersa. Porque dois parece um, porque nossas respirações se misturam, porque nosso calor se confunde, porque nossos lábios se unem. Porque eu me sinto bem. Porque você não se sente mal, não se sente mais só, como se o mundo não gostasse de você. Porque eu gosto de você. Gosto. Adoro.  


Veja bem, meu bem
sexta-feira, junho 17


      Costumava ignorar a felicidade, esgueirar-me de sentimentos fortes, fugir de pressupostos romances. Mas meu escudo se desintegrou e eu não consigo mais lutar. Você me pegou de jeito num golpe mortal porém suave. E eu não ligo de perder essa batalha pra você, meu bem, eu não ligo. Você me ganhou.
   Desde o princípio eu me senti em desvantagem. A balança pesava pro seu lado e eu pensei na desistência como melhor saída. A equação "eu mais você" parecia ser de natureza nula com porcentagem zero de significância. Erro meu. Agora penso que o resultado é certo; é bom. Bom como o roçar da sua barba, o deslizar de seus lábios sobre a minha face e meu pescoço e minha nuca. Seu combo de cheiros. 
    Não tenho dedos suficientes pra contar as vezes em que confundi o real com o surreal. Por que você me faz perder os sentidos? Você embriaga minha razão e me faz falar babaquices. Mas você me faz bem, meu bem, como ninguém.   


Coração de metal
segunda-feira, abril 25

      Dorothy caminhava pela neve e gostava de fingir que na verdade andava por entre as nuvens. Seus passos eram delicados, consistentes. Escondido pela sobreposição de roupas estava seu collant e em seus pés sua sapatilha vermelha. Seguia sempre em frente por um caminho de pedras que parecia não ter fim, porém não se importava: em algum lugar haveria de chegar. O sol brilhava tímido, as nuvens cor de algodão não o deixavam aparecer por total, enquanto Dorothy caminhava. Ploft! A menina tropeçou. "Maldita pedra", reclamou baixinho, chutando-a para longe instintivamente. Então, puft! As sapatilhas vermelhas de Dorothy brilharam e a pedra tomou forma de um coração cinzento metálico. A menina primeiro teve medo, depois se admirou. Apesar de tosco, o coração era dotado de uma beleza delicada. Quando Dorothy estendeu a mão para pegar aquele curioso objeto, sentiu um toque metálico e percebeu que agora havia uma outra pessoa ali, estendendo também sua mão para coletar o coração. Sua reação foi imediata ao toque dos dedos. Ela sentira uma espécie de choque com a aproximação. O que poderia ser aquilo? Levantou os olhos e sua respiração parou. O que estava parado a sua frente era diferente de tudo que já vira. Perguntou-se se era humano, mas logo se repreendeu por tal pensamento.
    "De-desculpe, senhorita. Mas. Acho. Que. Esse. Coração é meu". O estranho indivíduo falava pausadamente e com certa dificuldade. 
     Como um robô.
    Dorothy estendeu o coração metálico tosco a frente daquele estranho ser, estática. Seu cérebro parou de funcionar por um instante e tudo aquilo que parecia ser já não era mais. A lógica se perdera junto com a razão. A garota gostava de ler estórias e contos de fadas, mas quando havia olhos de lata mirando-a, ela não sabia o que pensar. 
   Um floco de neve deslizou na face de Dorothy enquanto incontáveis questionamentos passavam pela sua mente. Olhou para os seus sapatinhos vermelhos e eles continuavam brilhando estranhamente. Depois voltou-se para a figura metálica. Ele, por outro lado, não parecia desconfortável com a situação, apenas curioso. Brincava com os flocos de neve que agora caiam com mais frequência. Dorothy quis saber se ele era capaz de senti-los, mas optou por continuar em silêncio.
    "Que lugar estranho esse seu. Aqui as nuvens ficam no chão". Falou o homem metálico, olhando para o amontoado de neve em seus pés.
       Dorothy ia contar-lhe que aquilo na verdade não eram nuvens, mas até ela já estava começando a duvidar do que cada coisa realmente era. 
     O homem de lata deixou escapar uma exclamação, como se tivesse acabado de lembrar de algo importante. Abriu uma espécie de compartimento próximo ao seu peito esquerdo e Dorothy se surpreendeu ao ver que onde deveria haver um coração só havia um vazio. O coração metálico começou a brilhar quando o homem encaixou-o junto ao peito. Uma onda de energia perpassou por todo seu corpo. Dorothy levantou as sobrancelhas e levou as mãos à boca: os olhos de lata que a miraram antes adquiriam agora aspecto humanoide. Um par de lindos olhos cor de mel. O homem de lata já não era de lata. Ele podia sentir os flocos de neve.
      De súbito, o rapaz aproximou-se do rosto da menina. Suas respirações se encontravam somando numa só. Seu lábio suave tocou as bochechas de Dorothy, corando-as. Os sapatinhos vermelhos pararam de brilhar. O curioso sujeito se evaporou, seguindo a ventania fria. Os flocos de neve pararam de cair. E Dorothy chorou baixinho, com a memória do último suspiro do homem de lata: 
           "Obrigado."

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Inacabado
segunda-feira, março 14

  Era uma noite fria e silenciosa. Havia poucos carros passando em um intervalo de tempo longo. Alguém poderia facilmente atravessar a rua sem precisar olhar para os dois lados. Porém, na esquina, uma pessoa esperava o sinal mudar de cor. Parecia calma, imparcial. A julgar pelos trajes e pelo cabelo amarrado num belo penteado, diria que vinha de um evento formal, de um casamento, quem sabe. Flagrei-me admirando-a, desde seu tornozelo que estava a mostra, à face, pálida e misteriosa. O sinal então abre e a mulher de vestido longo caminha pela faixa, aproximando-se lentamente. Não sei a razão para o que me ocorreu naquele momento e acho que nunca saberei. O que sei foi o que senti. E senti, subitamente, a frequência dos batimentos aumentando, minhas mãos suando frio; um nó na garganta. Comportamento estranho diante de alguém desconhecido, você deve pensar. Mas qualquer cristão se portaria assim, ao ver aquele par de olhos azuis claros, tão claros e brilhantes, azul topázio. Por uma fração de segundos pensei estar em outro mundo, quando aquelas esferas me fitaram. Voltei a mim e desviei o olhar para o semáforo, esperando o sinal verde brilhar novamente. Em condições normais eu continuaria encarando-a depois a cumprimentaria e chamaria para um café. Mas a minha mente dizia que nós pertencíamos a mundos diferentes. O sinal já não era mais vermelho e um carro parava próximo a faixa.

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Ironia intergalática
terça-feira, março 8

     Jude gostava de imaginar como seria o universo. Criava imagens de criaturas diversas, algumas até medonhas, outras, belas. Desenhava estradas tridimensionais entre planetas, fazia das estrelas postes de energia. Arquitetava prédios de todas as formas geométricas aprendidas em seus livros de matemática. Passava tanto tempo em sua varanda mirando a imensidão do céu que esquecia que seus pés estavam grudados no chão. 
   Um dia, enquanto Jude fingia acenar para um mochileiro galáctico diante de seu binóculo, uma sombra que parecia humana entrou em seu caminho, deixando-o assim bastante irritado. Quem haveria de ser essa pessoa tão inconveniente que resolvera atrapalhar seu contato espacial? Tirou o binóculo do olho e voltou sua atenção ao corpo que se portava a sua frente. Era um menino. Ruivo, olhos claros, algumas sardas, pele esverdeada... Espera, o que? 
  - Olá, chamo-me Karl. - Falou o estranho menino.
  - Sou Jude. - Continuava irritado, mas sua mãe lhe ensinara os bons modos.
  Houve silêncio. Os dois garotos se olhavam, curiosos. Havia algumas semelhanças entre eles, mas havia também diferenças. 
  - Desculpe mas... O que há com a sua pele? - Perguntou Jude, timidamente.
  - O que há com a sua pele? - Indagou Karl.
  Agora Jude estava completamente confuso. Que garoto estranho era aquele? Será que ele sofria de alguma doença? De súbito o forasteiro ajoelhou-se, tocou na grama verde do jardim e levou um pouco a sua boca. Cuspiu rapidamente, junto com uma careta. 
  - Tem gosto de poeira estrelar. - Resmungou Karl. 
  - Como assim? Poeira estrelar tem gosto de grama? - Jude agora arregalava os olhos.  
  - Então isso se chama grama? 
  - Mas é claro. Você é maluco?
  - O que é maluco?
  - É você! - Disse Jude, alterado.
  - Não, eu não sou maluco, eu sou o Karl. - Falou confuso o garoto ruivo.
  Toda aquela conversa já estava se tornando muito ridícula e a paciência de Jude esgotava-se. Resolveu que sairia dali o mais rápido possível pois ainda havia muitos planetas para observar.
  - Eu acho que é melhor você voltar para casa e se cuidar. - Disse Jude, preparando-se para partir. 
   - Mas... - Insistiu Karl. Porém, antes que pudesse dizer mais alguma coisa, o outro garoto já estava fechando a porta.
   Karl, o pobre menino esverdeado, ficou ainda alguns minutos olhando para a porta da varanda, esperando o menino do binóculo voltar. Não recebendo sinal, abaixou a cabeça e, num piscar de olhos, sumiu.
  No ar, junto à leve brisa que vinha do leste, um sussurro triste, quase imperceptível, soava: mas você acenou-me


Voodoo Girl
sexta-feira, fevereiro 25

Her skin is white cloth,
and she's all sewn apart
and she has many colored pins
sticking out of her heart.
She has many different zombies
who are deeply in her trance.
She even has a zombie
who was originally from France.
But she knows she has a curse on her,
a curse she cannot win.
For if someone gets
too close to her,
the pins stick farther in.
 
Do livro "The Melancholy Death of Oyster Boy" by Tim Burton.


Broto
terça-feira, fevereiro 22

     
  Era noite de sexta feira. O dia fora um tanto incomum: choveu, quando deveria ter feito sol; esfriou, quando deveria ter queimado. Mas o que tornou aquela data estranha não foi apenas as disparidades climáticas, foi algo maior que isso. Tudo se mostrou tão repentinamente que por um momento a protagonista da história pensou ter errado de mundo, ter viajado sem querer entre os paralelos e não ter voltado. Simplesmente não podia ser verdade que num piscar de olhos seu coração bateu diferente, que numa fração de segundos um sentimento fixou-se em sua cabeça. Só podia ser loucura. Era isso, ela ficara maluca. Mas maluca ela não sempre fora? De qualquer modo agora, na madrugada dos grilos, ela pensava que talvez estivesse surgindo algo... Algo que sempre quis... Algo tão perigoso que ela temia até mesmo pensar que poderia ser. E pensava mesmo assim, mas pensava baixo, quase num sussurro. Poderia ser, meu Deus? Não, é cedo demais. Mas o que quer que fosse aquilo que a incomodava naquela noite escura, era bom. Era agradável e gostoso. Era talvez o início daquilo que se escreve com quatro letras, mas que é bem maior do que a maior palavra de qualquer dicionário.       


Carta pra meu bem
sexta-feira, fevereiro 18

Mossoró, 18 de fevereiro de 2011.


Querido amor,


estou escrevendo esta carta sem saber exatamente para onde mandar. Peço-lhe que me dê notícias o quanto antes, a espera esta sendo longa e eu começo a pensar que talvez esteja próximo o dia em que eu vou cansar de te imaginar, de te desejar. Então, por favor, apareça. Já perdi a conta dos dias que eu vivi apenas com uma lembrança fabricada; das noites que eu virei com promessas imaginadas. Sou a prova de que é possível sobreviver alimentando-se de ilusões, mas há partes de mim sedentas pelo concreto e eu acho que em algum momento elas me devorarão. Então, apareça, meu amor. Não me deixe esperando tanto tempo assim. Porque o tempo não só cura, ele também fere. E maltrata e faz arder. Meu bem, eu já te tive tantas vezes, e todas as vezes você me deixou ao despertar dos olhos. E foram noites tão bonitas, meu bem, você nem imagina. Já desejei nunca acordar. Mas, querido, não se preocupe. Eu estarei aqui quando você me encontrar. De braços abertos, de coração limpo. Eu estarei aqui.


                                                                 Atenciosamente,
                                                                um coração que bate.
     

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Conto: O mistério em vermelho
terça-feira, fevereiro 15

      Chovia nos arredores de Rökk. Os muros de pedra que guardavam o castelo do Rei-Fera eram grandes e ameaçadores, como que fizessem jus à figura de seu líder. Havia guardas por todos os lados e, devo alertar, os guerreiros do Reino de Rökk são mais feras do que homens. Dentro do castelo, poucos móveis. Um ar obscuro, frio. Todos os cômodos tinham aspecto melancólico, a exceção de um. Aquele, sem exageros, poderia ser o aposento mais belo de toda Nova Ether. Na cama um corpo de mulher remexia-se, pronto para levantar-se de um longo sono. Seus cabelos eram lisos e castanhos e, mesmo bagunçados, eram lindos. A mulher caminhou até uma rosa e admirou-a. Deixou a essência tomar-lhe o corpo, os sentidos. Depois seguiu em direção a uma rústica mesa de cabeceira, no lado esquerdo da cama, e posicionou-se em frente a um grande espelho central. O reflexo daquela mulher explicitava uma beleza tão grandiosa que não cabe em palavras. Até a mais pura das criaturas evitaria olhá-la, temendo que fosse levada por aqueles olhos verdes, como uma onda cava e profunda que ameaça avançar e tudo sugar. Aquela mulher era Bella, a princesa dos olhos de ressaca.
       Num dos andares de baixo, apertados em um aposento escuro, dois adolescentes sussurravam palavras nervosas. Vinham de uma terra distante, mas não de um reino qualquer: Arzallum, país do Rei dos Reis. Carregavam nas costas uma importante missão. Se falhassem, haveria sangue no lugar de neve. Ariane Narin, ignorando o fato de estar tão próxima de João Hanson que era capaz de sentir sua respiração, o olhava assustada. Não assustada como dois adolescentes apaixonados em proximidade, mas como dois barris de pólvora prestes a declarar o estopim de uma guerra. Ele tentava acalmá-la alisando sem jeito seu braço direito. Precisavam de um plano. Precisavam de respostas. Mais cedo àquela tarde Ariane o havia procurado. Ela finalmente conseguira, depois de semanas infiltrados no castelo como servos, trocar algumas palavras com a princesa Bella. Mas o que deveria ser uma conquista transformou-se em desespero. A menina falara de seu plano, em como Rei Anísio Branford resolvera ajudar o então desesperado Rei Adamantine, de Aragon, a resgatar finalmente a sua noiva das garras do tirano Rei-Fera. Dissera com ânimo que estava ali para levá-la de volta para seu Reino, para sua vida. Mas, para a surpresa de Ariane, Bella parecia não entender do que aquilo se tratava. Achava que a menina deveria ter se enganado, pois não se lembrava de nenhum Rei Adamantine, nem de nenhum Reino de Aragon. E por esse motivo Ariane Narin estava agora aos braços de João Hanson, desolada, com medo. De alguma forma a princesa se esquecera de sua antiga vida e recusava-se a sair de seu aposento. Se eles não descobrissem logo um modo de trazer à tona as memórias de Bella, algo muito, muito ruim, aconteceria.
      Era noite. O castelo de Rökk abandonara sua monotonia usual para ser palco de um grande banquete em homenagem ao Rei-Fera. Os criados eram forçados a trabalhar dobrado, rodavam pelo castelo, reviam tudo nos mínimos detalhes. Não que o Rei-Fera fosse perfeccionista, longe disso, mas ninguém queria perder a cabeça. Nesse dinamismo estavam João Hanson e Ariane Narin. Não podiam abandonar suas atividades servis, principalmente agora, e, por esse motivo, mal conseguiam se falar nos últimos dias. A situação fora do Reino de Rökk apertava-se cada vez mais. O Rei Adamantine estava ficando impaciente. João Hanson caminhava agora pelos corredores do castelo, tão disperso em seus pensamentos, que não sabia ao certo para onde seguia. Só quando viu de relance um corpo peludo se esgueirar para fora de uma porta, despertou. Era o Rei-Fera. João paralisou por um instante mas, ao notar de quem era o quarto, uma luz clareou sua mente e uma onda de curiosidade e excitação percorreu seu corpo. Havia tantas flores que João pensou ter errado de porta e pegado um atalho para o jardim. Deu mais uma olhada no cômodo. Flores misteriosamente transfiguravam-se nos cantos, cresciam entre as paredes, tomavam espaço pelos delicados móveis de madeira. Aquele era, sem sombra de dúvida, o quarto da princesa Bella. Entrou ainda boquiaberto. Não é todo dia que se vê algo assim. À medida que percorria o aposento, suas dimensões pareciam aumentar. Havia algo estranho ali. Avistou um vermelho. Estremeceu. Seu histórico com sangue não era dos melhores. Olhou mais uma vez, apertando as pálpebras, e a viu. Era uma pequena, mas não menos significante, rosa vermelha. Parecia ter uma atenção especial, um maior cuidado, pois ao seu redor, cobrindo-a, havia uma tampa feita de vidro. Sua fragrância era tão encantadora que era possível sentí-la pelo resto da vida. João Hanson caminhou rumo ao vermelho. Sua mente desejava aquela rosa, suas narinas pediam por aquela essência. Não muito longe dali, Ariane Narin sentiu uma brisa fria, gelada. Suas pupilas dilataram, todos os pelos do seu corpo arrepiaram, seu coração acelerou. Ariane Narin sentia a magia negra. 
      Se todas as atenções não estivessem voltadas ao jantar, uma garota correndo desesperada pelas escadas de pedra teria despertado inúmeras suspeitas. Mas, ignorando seu disfarce e a possibilidade de estragar a missão, Ariane Narin seguia firme aquela sensação. Talvez fosse a resposta que ela tanto procurara. Era óbvio: a princesa só poderia estar sobre efeito de magia negra. Como ela não sentira quando estava próxima à Bella? Balançou a cabeça. Esse não era o momento para averiguar o passado, algo muito sério estava para alterar o futuro e Ariane era a única pessoa que poderia evitar isso.
       Porque Ariane Narin era uma bruxa.
    A menina de súbito sentiu o sangue congelar. Deveria estar próxima. A alguns passos viu uma porta entreaberta, com uma luz quente vindo de dentro. Era lá. No próprio quarto da princesa, onde Ariane já estivera há alguns dias. Antes de entrar sussurrou algumas palavras estranhas. Estava armando-se para o pior. Passou pela porta, com magias de proteção, e rapidamente levou as mãos à boca, abafando um grito. João Hanson, seu beija-flor, o garoto que espalhava a melhor parte de sua alma, estava caído ao chão, desacordado, com as narinas sangrando. Segurou-o em seus braços, tentou acordá-lo, limpou os vestígios de sangue em seu nariz. Podia sentir um traço de magia negra em seu corpo, mas como? O que acontecera? Olhou para os lados desesperada por alguma luz, mas sua mente começava a relaxar. Olhava para o cômodo, para o garoto inconsciente, e começava a se perguntar por que estava ali. Um aroma a impedia de concentrar-se. Havia uma essência no ar que a hipnotizava. “A...Aria...ne”. Uma voz chamava-a de longe. Mas não era qualquer voz, ela sentia que não. Aquela voz aquecia seu coração, ativava seus sentidos. “João!”, gritou a menina, respirando rápido, como se acordasse de um sonho ruim. João abrira os olhos e, juntando todas as suas forças, conseguira sussurrar o nome de Ariane. Agora ele alternava os olhares, primeiro para menina depois para frente, como se quisesse dizer que havia mais alguém ali. E de certo havia, mas Ariane só percebeu tarde demais, quando foi atingida no peito por uma força. A princesa Bella estava de pé,  junto à porta, com a mão direita erguida. João, ainda fraco, tentou levantar-se e reagir, mas os músculos do seu corpo contraíram, enchendo-o de dor. A pigmentação do olho de Bella sumira, não havia íris, só o branco.  Ariane tremia, sua vista estava embaçada por conta das lágrimas. Estava novamente com João aos braços, desesperada, tentando lembrar algum contra feitiço.
       - É... a ro...sa - murmurou João, em meio à dor.
      A rosa agora brilhava com intensidade, e ao redor da princesa acumulava-se uma névoa sombria. Havia pouco tempo que Ariane iniciara na magia, ela nunca sentira tanto poder. O quarto começava a ficar cada vez mais escuro, as flores que cobriam o recinto murchavam; a magia negra espalhava-se. De súbito, Bella estremeceu freneticamente e Ariane sentiu que o próximo movimento da princesa seria o seu último suspiro e de João Hanson. O corpo da mulher contorcia-se, havia convulsões, palavras estranhas saiam numa voz que certamente não era dela. Ariane tentou juntar o que restou da essência da natureza, mas foi em vão.  Viu o Rei-Fera entrando no cômodo. Era isso. Era o seu fim e não havia nada que ela fosse capaz de fazer para mudar isso. Olhou para João, estendido em seus braços, e pensou que talvez não fosse ruim morrer assim. "Sua idiota, não pense besteiras. Lute!", a voz do garoto ecoou em sua mente e, quando tudo parecia acabado, uma força sobrehumana encheu o pequeno corpo da menina. Ariane nunca soube explicar o que sentiu naquele dia, só o que sabia era que um grande poder explodira dentro de si, como se fosse uma luz que há muito esforçava-se para sair. A escuridão antes viva fora fortemente reprimida com a imensidão de luz que emanava do corpo da menina. Era tão radiante que todos fecharam institivamente os olhos. Houve gritos, muitos. E de repente tudo voltara ao normal. Ou o mais normal que a situação pudesse ser. A princesa voltava a si, o Rei-Fera estava estendido no chão, inconsciente, com uma mecha cinza em sua pelagem; a rosa vermelha espedaçada junto a seu corpo. João milagrosamente havia recuperado as forças e os hematomas sumiam. Ele olhou para Ariane, ainda um pouco abalado, e sorriu. Aquele sorriso causou lágrimas, mas lágrimas de alegria, de esperança. Lágrimas de vitória.
     E o que aconteceu em seguida? Bom, você só precisa saber que tudo voltou a seu devido lugar. 

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A espera


 
  O outono chegara mas se fazia de verão. As folhas não caiam, o ar não era sereno, o verde não tornava-se laranja. E a menina chorava. Ela se cansara daquele verão interminável, da tirania do sol, da perspectiva de consistência. Desejava novos ares, almejava mudanças. Estava farta de dividir seu quarto com o vazio ou passar o tempo com a melancolia; de contar estrelas com a solidão. 
 A menina espera alguém que perturbe seu coração, que complete seus pensamentos e a faça rir mesmo não havendo motivos. Alguém que entenda seus sinais confusos, suas negações dissimuladas, suas intenções  sob entrelinhas. 
 A menina quer alguém que salve o outono raptado e destrua o falso verão.
  
Ps.: desculpem meus textos medíocres, estou num vazio enorme.    


Ana e o mar
domingo, janeiro 30


  Ana aproveitava os carinhos do mundo, os quatro elementos de tudo, deitada diante do mar, que apaixonado entregava as conchas mais belas, tesouros de barcos e velas que o tempo não deixou voltar.
O teatro mágico


Dias de chuva
terça-feira, janeiro 11

  
    Ariane gostava de olhar as gotas de chuva seguirem a gravidade enquanto escorriam pelos vidros da janela branca de seu quarto. O aparente silêncio e a leve brisa que levavam seus cabelos castanhos faziam-na cair num mundo que não era aquele. Seu mundo. Um mundo criado de pensamentos, anseios, questionamentos. Ariane mergulhava em seu eu. De súbito sentiu um cheiro que não lhe parecia estranho. Surpreendeu-se. Não poderia ser aquele cheiro. Fechou os olhos no intuito de concentrar-se somente na essência. Uma forma então começou a surgir em meio ao breu. Ela vinha tímida, suave, mas a reação que causou foi dura, dolorosa. Era o perfil de um rosto masculino que a menina conhecia muito bem. Ariane balançou a cabeça, queria afastá-lo. Num outro tempo ela teria o deixado lá, teria até o admirado com amor. Mas esse tempo passara e agora ela enxergava os fatos com nitidez. Estava cansada. Cansada de esperar por coisas que nunca foram feitas, por palavras que nunca foram ditas. Não suportava mais depositar esperanças num poço vazio. Ariane, observando a gota de chuva aproximar-se da superfície da janela, percebia agora que a espera chegara ao fim. O vento cessara, o cabelo voltara à sua imobilidade, a imagem se apagara. Ariane respirou os últimos resquícios de chuva e fechou sua janela branca.  


Short Message Service
domingo, janeiro 2

   Queria estar aí... Às vezes sinto falta de falar com você, sabe? Apenas falar. Olhar bem fundo em seus olhos, examinar sua face. Ouvir aquela risada que me enche o peito. Sei lá. Eu só queria estar perto de você. Não sei. De vez em quando eu sinto essa abstinência. 
   E, [In]Felizmente, você não é o tipo de vício que eu quero largar.

Para:
Você

Enviada: 

Nunca


Receita para a solidão
quarta-feira, dezembro 29

          Medo


    Eu tenho medo. Medo de amar, de me deixar levar. Eu quero, mas recuso. Aproximo, mas afasto. Pode-se dizer que sou um exemplo vivo da contradição. Da indecisão. Por que é tão difícil? Ou melhor, por que eu faço do fácil um monstro de sete cabeças? Não sei, sinceramente, não sei. Talvez eu já tenha amado uma vez, talvez já tenha deixado cegar-me de amores. E talvez eu tenha sofrido. A cicatriz não é visível, mas ela está lá. E queima e dói e machuca. Faz-me ter medo. Mas isso é só uma suposição. Talvez a culpa do meu medo não seja um antigo coração partido. Ou talvez seja. Quem sabe? Só sei que você me deixa nervosa de um jeito que eu não sei lidar. Você absorve minha coragem. Minhas pernas ficam bambas. Eu levo as mãos à cabeça com medo de que ela deixe a realidade. 
   E no fim do dia cá estou eu, com o celular na mão, uma mensagem escrita, um chamado para a coragem, e uma caixinha de se's


[ ]
quinta-feira, dezembro 23

    
Meu sangue está gelado. Minha circulação, lenta.
Houve um tempo em que senti tanto, mas esse tempo já passou.
Não fosse meu pulso, poderia crer que por entre os ossos já não há um coração que bate. 
Não fosse meu impulso, poderia crer que no lado esquerdo do peito descansa um buraco negro.
Vazio.
O vazio que ninguém quer mas que não tem escolha.
O estado de quem todos fogem mas que sempre alcança.
Vazio.
Pegou-me.


Tão certo que dói
quinta-feira, dezembro 9

   Tudo o que eu desejo é voltar àquela madrugada quando nós éramos apenas mais duas pessoas apaixonadas, de certo modo desconhecidas, mas felizes. Lá, naquela casa de praia, naquele alpendre, banhados pelo luar, foi onde meus lábios conheceram os teus. As horas que antecederam foram de nervosismo, impotência e timidez. Éramos duas pessoas com um só desejo, mas duas pessoas covardes. Você era tão perfeito para mim que assustava. Assustava-me  pensar que um dia eu estragaria tudo com os meus defeitos, com a minha mania de afastar as pessoas, de amar com o cérebro e não com o coração. Talvez aquele foi o momento em que eu mais me senti viva. Foi um dos poucos em que eu tive certeza de algo. Eu e você. Não existia nada mais certo nem menos errado. Você e eu... Agora dói. 
   Meu medo se concretizou e eu te afastei. Mas é que você me ameaçava de um jeito que me deixava sem razão, e eu temia. Não parecia lógico que eu me apaixonasse e desapaixonasse por você todas as semanas, ou que minha capacidade de formular frases com coerência falhasse todas as vezes que eu tentava falar com você. Você me confundia, transformava-se em um quebra-cabeças que eu não conseguia montar. Você me deixava neurótica, impotente, impaciente, estranha. Eu não tinha controle, não sabia como lidar. Tinham me dado um jogo sem manual de instrução.
   Eu entendo agora... Mas agora já não importa.     


Epifania
segunda-feira, dezembro 6


   Está cada vez mais difícil acreditar. Nós somos uma geração perdida, vazia, sem ideais e melancólica. Legítimos burgueses sem religião. Temos pelo que lutar, mas nos falta vontade. Estamos afogados na inutilidade, acomodados em nossas cadeiras, fazendo do mundo virtual a nossa realidade. Somos como um pássaro que, iludido com a segurança que as grades lhe proporcionam, esquece como é bom voar. Mas a culpa não é em total sua. Às vezes o pássaro quer subir tão alto quanto as nuvens, quer viver e seguir o curso dos ventos, mas há sempre uma força maior que o impede de ir mais longe; uma força que o prende. 
  E o pássaro volta a sua condição inicial: sedentário solitário otário.    


Em conserva
quarta-feira, dezembro 1

   Eu não quero que minha rotina mude ou que meus amigos se transformem em lembranças fragmentadas. Eu não quero sentir saudades mas sim deixar saudades. Eu não quero escolher caminhos sem saber se há atalhos, armadilhas ou lobos em retaguarda; não quero provar o sabor da distância nem sentir os seus efeitos. Eu quero guardar tudo numa caixa, embalá-la com rolos e rolos de fita crepe e deixá-la imune ao mofo, ao esquecimento. Quero meu mundo todo só para mim. Estável. Imutável. Intocável. Desse modo ninguém se machucaria, ninguém seria obrigado a seguir um caminho diferente. As partes do meu coração permaneceriam juntas. A dor, ah, a dor... Ela não precisaria mais transfigurar-se na perda, na distância. Simplesmente não seria necessária. 
   Mas esse não é o meu mundo, não fui eu que o criei e não fui eu que ditei suas regras. As pessoas vêm e vão constantemente. As dores vão e vêm inconsequentes. E não há nada que se possa fazer além de seguir o tempo, ser escrava do tempo, sofrer por um tempo.           


It's not a fairy tail
terça-feira, novembro 30


    Era uma vez uma garota que, diferente das personagens dos contos de fadas, não morava em um grande castelo, nem era a mais bela de todas as flores, nem muito menos esperava um príncipe encantado resgatá-la montado em seu alazão. Na verdade ela não tinha nada de especial. Seus cabelos castanhos eram bagunçados e nem um pouco brilhantes, sua face não era lisa, tinha problemas com acne; ela não tinha um corpo exuberante, nem um sorriso perfeito. Mas espere, talvez a garota tivesse alguma coisa, ou mesmo algumas coisas. Mas essas coisas eram difíceis de serem vistas. Não eram óbvias como seios grandes ou sei lá, corpos. Apenas uma pequena parcela era capaz de enxergá-las, uma pequena parcela, quase insignificante. Coração, mente, alma, integridade, ideais, sonhos... Nem todos naquela terra conseguiam entender. Mas a garota continuava lá, em sua janela quadrada e comum, esperando. Esperando a chuva parar, o arco-íris surgir, o sol queimar, a lua esfriar, as estrelas sorrirem. Esperando e desejando que talvez, um dia, alguém seja capaz de vê-la além do que ela é. Seja capaz de entendê-la melhor do que ela mesma. Consiga amá-la por inteira.


Luzes e nostalgia
sábado, novembro 20


   Era noite mas havia luz em toda parte. Luzes de todas as cores: amarelo, vermelho, azul, verde. Algumas giravam, outras piscavam, numa dinâmica de tirar o fôlego. Lembro-me de uma série de rostos sorridentes e lembro-me que nenhum deles era o meu. Aquele momento não fazia sentido se meu coração não estava lá. Minhas tentativas de felicidade de nada adiantavam, pareciam servir apenas para expandir minha tristeza. As pessoas trafegavam, esbarravam no meu corpo inerte e eu nada sentia. Os brinquedos rodavam, gritos ecoavam, cerebelos confundiam-se. E eu era nada mais que um ponto disperso. As horas passavam e, por mais que o meu coração parecesse próximo, eu tinha consciência que não: ele era como o infinito que não podia ser alcançado. Então o possível resolveu pregar uma peça e deixou o impossível acontecer. O meu coração aproximou-se, abraçou-me e disse que tinha errado em deixar-me. Ele estava certo. Como um corpo pode funcionar sem o seu coração? Desse momento em diante todos os rostos que passavam pareciam tristes perto do meu sorriso. Eu não era mais vazia, nem confusa, nem um corpo inerte. Eu estava novamente completa. E foi assim que aquela noite iluminada naquele parque transformou-se numa lembrança que transformou-se numa gostosa nostalgia, na qual sempre saúdo com um sorriso no rosto e um aperto no peito.
   


Amarelo amor
quarta-feira, novembro 17

Esse teu amor sufoca, prende, aperta e maltrata.
Usa, desusa, abusa e se desfaz.

   
   Num belo dia de outono estavam um menino e uma menina a brincar. As folhas amareladas caíam e cobriam a planície que já fora verde, despiam a árvore que já fora moça, tomavam lugar do que já fora vida. O vento mostrava-se forte, fazendo tímidos redemoinhos que levavam o vestido da menina. Ela não deixava-se incomodar, ainda havia pureza em sua mente. Problemas simplesmente não existiam. A menina não sabia ainda sobre a ambiguidade dos sentimentos nem sobre as feridas que não podia ver. O menino então aproximava-se. À medida que seus pés tocavam o chão, as nuvens se amontoavam e ficavam pesadas. Talvez fosse um sinal mas a menina não percebeu. Quando deu por si já havia caído aos braços do menino. Quando deixou-se vulnerável, não teve chances. Desabara sem saber a gravidade da queda. 
   Agora os dias pareciam diferentes, as horas passavam mais rápido quando a menina estava com o menino. Ela não entendia o que nascera dentro do seu peito. Simplesmente não compreendia como seu coração parecia ter vida própria: acelerava de um hora para a outra, parava, normalizava, disparava novamente. Chegou a achar que estava doente. Ajoelhou e pediu ao papai do céu que a olhasse e cuidasse. Antes não tinha medo, agora tinha medo de ter medo de ter medo. A menina queria entender por que sorria quando o menino sorria; chorava, quando ele chorava. Por que sentia como se existisse algo dentro dela maior do que seu corpo suportava.
   Pensou, pensou e pensou, que pifou. Suas teorias e análises de nada serviam. A menina então resolveu que deixaria de preocupar-se. Seus botões já estavam bagunçados e desordenados. Decidiu que da próxima vez que visse o menino, nada faria. Deixaria que todas aquelas coisas estranhas viessem a tona, então travaria uma luta com elas e as domaria. Pensou que talvez o único modo de entender aquilo que não podia enxergar, era simplesmente não entender. A menina compreendeu que às vezes o que nos resta é sentir. Sentir, e só.